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Na sua idade não há nada a fazer

por Magda L Pais, em 10.07.15

O Sr Carvalhal tem 97 anos. Num mundo ideal, estaria a gozar a sua reforma, rodeado dos filhos, dos netos e até, quem sabe, dos bisnetos. Não seriam muitos mas os bastantes para que ele sorrisse e não tivesse de se preocupar com nada.

Infelizmente o Sr Carvalhal não vive num mundo ideal. No mundo em que o Sr Carvalhal vive - no Centro de Lisboa - ele tem de se levantar todos os dias às 5h30 para recolher os caixotes do lixo. Porque, aos 97 anos, o Sr Carvalhal ainda é o porteiro do prédio onde vive e é ele que assegura que o lixo é colocado, diariamente na rua e depois recolhidos os caixotes.

Em vez de filhos, netos e quem sabe bisnetos, o Sr Carvalhal está sozinho. Tem um sobrinho, algures neste planeta, que não vê há quase 10 anos. Todos os dias são iguais para ele. Não há Natal, Passagem de Ano ou aniversário. Só se apercebe dessas datas porque os que passam por ele lhe desejam uma boa quadra festiva.

Todas as sextas feiras, quando me despeço dele, penso como será o fim de semana dele, sozinho em casa. À segunda feira, quando o vejo sentado na sua secretária na entrada no prédio fico satisfeita. Todos os dias conversamos um bocadinho quando chego.

Na segunda, quando lhe perguntei como tinha sido o fim de semana disse-me que tinha desmaiado em casa. Fiquei aflita. Então Sr Carvalhal, e quem deu consigo? O Alfredo?

(Eu e o Alfredo somos o contacto de emergência dele nos Hospitais. O Alfredo tem a chave de casa dele e, de vez em quando, vai lá a casa ver como ele está. Principalmente quando ele não atende o telefone)

Não menina, não foi o Alfredo. Eu é que acordei passado um bocado, levantei-me e aqui estou. Então Sr Carvalhal, e quando é que vai ao médico. Na quinta, menina, vou na quinta.

Quinta foi ontem.

De manhãzinha cheguei ao prédio e quando olhei para a secretária tive um baque. O Sr Carvalhal estava de olhos fechados e cabeça tombada. Assustei-me mas, felizmente, tinha apenas adormecido.

Quando o vi à tarde perguntei-lhe: então Sr Carvalhal, que lhe disse a médica? Olhe menina, para além do resto, também tenho pedras nos rins e o fígado inchado. E que lhe mandou a médica fazer? Nada menina, disse-me apenas que, na minha idade, não há nada a fazer...

Fiquei sem palavras, na altura. E continuo sem palavras... Que mundo é este em que a velhice é tratada desta forma?

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Velhice

por Magda L Pais, em 23.12.14

Idosos-Abandonados.jpg

Quando comecei este blog, em 2008, era minha intenção partilhar textos meus, mas também textos de outros, de autores mais ou menos conhecidos mas que me dissessem alguma coisa.

É o caso do texto da Maria sobre o Sozinho em Casa. Este texto não nos fala dos filhos. Mas dos pais. Dos avós. Aqueles que são ignorados constantemente por quem eles cuidaram toda a vida.

Não se passa isto lá em casa. Enquanto foram vivos, demos, aos meus avós, tudo o que eles mereciam. Quando o meu avô esteve às portas da morte no hospital, fomos todos para a porta da enfermaria, à espera de vez para entrar. E quando ele regressou a casa, todos os dias um de nós ia lá. A minha avó esteve num lar mas todos os dias nos revessávamos nas visitas. Isto quando não íamos todos ao mesmo tempo. Quando chegava o Natal e o Ano Novo, íamos busca-la para estar connosco a quadra completa – apesar do lar ser a 10 minutos de carro do sitio onde estávamos.

Já não estão entre nós. Nem os meus avós nem os pais do meu tio. De todos temos saudades, com todos passávamos esta época do ano, todas as épocas de todos os anos, e de todos tratamos e acompanhamos até que nos deixaram.

Infelizmente não é isso que se passa em muitos lados. Muitos velhotes estão sozinhos. Não só no Natal mas todo o ano. 365 dias de tristezas, de solidão, de não terem com quem falar. Cuidaram dos filhos, dos sobrinhos e agora, que precisam que tomem conta deles, desapareceram todos.

Quase todos os dias convivo esta realidade. Quase todos os dias tenho pessoas – porque são pessoas, seres humanos – que telefonam para o meu trabalho só porque precisam de conversar. Fingem ter assuntos a tratar para ouvirem outra voz que não a delas. Que nos pedem ajuda, sem pedir, para saberem que estão vivos.

Alguns nem as consultas médicas conseguem marcar e recorrem a nós para o fazer. Para outros, os mais próximos, somos o contacto de emergência a quem o hospital liga quando são internados. Somos quem perde um dia de férias para os levar ao hospital numa urgência. Somos quem se preocupa se têm comido como deve ser, se tomaram os medicamentos. Porque a família, essa, nunca aparece.

Ou talvez apareça um dia. Sim, um dia aparecem. Quando já não forem precisos, para saber se há bens ou dinheiro a herdar. Ai lembram-se que tiveram um pai, um avô, um tio. Que morreu sozinho, sem ninguém com quem conversar. Se deixou bens, era uma excelente pessoa. Se não, raio do velho que nunca foi útil.

A esses, a esses que tratam assim os velhotes que cuidaram deles, só lhes desejo que um dia não se arrependam.

(Não sejam timidos, leiam o texto da Maria no link acima. Vale mesmo a pena)

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